Epílogo
Um homem entrou no trem como quem atravessa uma fronteira invisível, o espírito perturbado escondido sob a máscara impecável do autocontrole. A marcha firme, o olhar inexpressivo, os gestos econômicos: tudo cuidadosamente calculado. E, ainda assim, havia algo — um estremecimento discreto nos ombros, uma tensão excessiva no maxilar — que o traía para quem soubesse olhar.
Avançou pelo corredor estreito até encontrar uma cabine de primeira classe, onde a porta de madeira entalhada permanecia entreaberta. Lá dentro, um jovem já estava sentado junto à janela, o rosto pálido voltado para a paisagem indistinta, os dedos inquietos tamborilando no joelho. Vestia um terno bem cortado, ainda que um pouco rígido demais, como quem se acostuma com a gravata pela primeira vez. Parecia ansioso.
O homem parou, respirou fundo, e então recuperou a compostura com a precisão automática de quem sabe o peso que carrega, mas se recusa a deixá-lo transparecer.
— Com licença — disse, a voz baixa, cortês, acompanhada de um breve aceno de cabeça.
O jovem ergueu os olhos, surpreso, mas logo assentiu, afastando-se um pouco para que o outro pudesse entrar.
O homem acomodou-se, cruzou as pernas com elegância controlada, e repousou as luvas sobre o colo, enquanto a locomotiva soltava um longo suspiro metálico e, enfim, começava a se mover.
O trem cortava o interior enevoado como uma criatura metálica, arfando a cada curva. As árvores desfilavam pelas janelas em sombras indistintas, e o céu — pálido, indiferente — parecia assistir àquele encontro com o mesmo tédio gélido de um deus antigo.
Na cabine silenciosa da primeira classe, dois homens sentavam-se frente a frente. Um era magro, de ossos longos e expressão fatigada; Arthur Mourvain. Jovem demais para suas olheiras, meticuloso demais para suas mãos nervosas.
— Você parece nervoso. Negócio importante? — perguntou o homem à frente de Arthur, a voz baixa como uma lâmina envolta em veludo.
Arthur esboçou um sorriso tímido e ajeitou os punhos da camisa.
— Um pouco, sim. Fui selecionado para uma vaga de tutor interino, mas ainda assim... é uma casa importante, uma família influente. E eu sou apenas... — ele riu, como quem tenta dissipar a própria insegurança — um tutor. Nada mais. Tenho medo de que não consiga passar do período de experiência.
O outro assentiu devagar, como se compartilhasse da humildade, mas por dentro sentia repulsa. Não pelo rapaz, mas por aquilo que ele simbolizava: a delicadeza inútil, a fé no mérito, a crença de que basta ser bom para estar seguro. Um erro perigoso. Um erro que ele não podia se permitir cometer novamente.
— Você parece qualificado — disse o homem, com um sorriso discreto. — Se foi selecionado é porque tem um histórico impressionante.
— Eu espero que sim. A família Wyndham valoriza tradição. E eu me dediquei ao latim, grego, teologia... acredito que me pareço muito com o que esperam. — Disse, passando a mão pelos cabelos.
Não demorou muito para que o jovem se sentisse mais relaxado na presença de seu companheiro de viagem. Falava sobre a correspondência trocada com a senhora Wyndham, sobre como a vaga como tutor parecia perfeita para seus planos de pesquisa e para seu desejo de isolamento produtivo. Era gentil, meticuloso, e carregava nos olhos a reverência dos que acreditam que o mérito ainda significa alguma coisa. Não notava a hesitação artificial do outro, nem o modo como sua mão esquerda nunca se movia sem a direita observando.
A cada frase trocada, o homem fitava Arthur com atenção crescente — como quem procurava por uma saída, vislumbrando ali, sentado naquele assento, uma oportunidade divina de deixar o passado para trás. Arthur Mourvain era estudado com a atenção de um entomólogo diante de um espécime raro. Cada gesto, cada frase, cada modo e entonação do jovem, tudo era memorizado. Mourvain fora gentil, ingênuo, educado demais para perceber o perigo sentado diante dele, sorrindo com a exatidão de um espelho.
A noite caiu como um véu espesso sobre o campo. O trem prosseguia entre túneis e colinas silenciosas. Na cabine, as luzes foram acesas com um estalo. O homem ajeitou os punhos da camisa e abriu uma pequena caixa de madeira escura, revelando um conjunto de peças de xadrez de viagem.
— Um jogo? — sugeriu, com um sorriso calmo. — Ajuda a passar o tempo.
Arthur hesitou por um momento, depois assentiu, sorrindo de volta.
Jogaram por quase quarenta minutos. Conversaram sobre estratégia, sobre o simbolismo da guerra em miniatura, sobre a elegância das regras. O companheiro de viagem deixou-se perder duas vezes. Deu a Arthur pequenas vitórias, suficientes para mantê-lo confortável.
Quando o terceiro jogo começou, Arthur bocejou e passou a mão pelo rosto.
— Perdoe-me... a viagem me deixou um pouco cansado.
— Entendo perfeitamente. Pode descansar. Eu fico de olho nas malas.
Arthur agradeceu. Deitou-se no banco de couro escuro e fechou os olhos, sem realmente dormir. O homem à sua frente observou o modo como ele se remexia no assento, mas não parecia conseguir pregar os olhos.
— Um pouco de leite quente ajuda. Sempre me acalma antes de dormir.
Arthur abriu os olhos, surpreso com a oferta, mas sorriu.
— Isso seria ótimo, se não for incômodo.
— Nenhum incômodo.
O homem ergueu-se com naturalidade e se retirou da cabine. Após alguns minutos, retornou com uma caneca de louça branca com bordas douradas e um leve aroma adocicado subiu pelo ar.
— Bebo isso em viagens longas — explicou, entregando a caneca.
Arthur aceitou com um "obrigado" murmurado, soprando o vapor por um instante antes de levar a bebida aos lábios. Tomou um gole. Sorriu.
— Está ótimo. Tem... noz-moscada?
— Um toque, sim — respondeu o outro, com o olhar fixo. — Dá uma sonolência tranquila.
Arthur recostou-se novamente. O calor do leite preencheu seu estômago como uma onda mansa. Depois de um tempo, as pálpebras começaram a pesar. O cansaço, agora, parecia líquido dentro do corpo.
— Você tem razão... — murmurou, a voz arrastada. — Isso realmente...
Não terminou a frase. A caneca escorregou de seus dedos e caiu sobre a poltrona com um baque surdo.
O homem permaneceu observando-o por horas, depois de apagar as luzes da cabine.
O corpo afundou contra o estofado, a respiração desacelerando até se extinguir.
Sem alarde. Sem sangue. Sem mancha.
O homem ficou imóvel por alguns segundos, escutando o silêncio. Então se aproximou, tocou o pulso do jovem com dois dedos, e confirmou o que já sabia.
Sem pressa, retirou o casaco de Arthur, trocou de lugar com ele e começou a vestir as roupas do morto como quem assume um papel, enfiou os documentos no novo bolso e destruiu os próprios.
No bolso interno, encontrou o bilhete de apresentação endereçado à família Wyndham. Leu-o em silêncio, depois o dobrou cuidadosamente e colocou no novo casaco.
Arthur Mourvain, formado em Oxford, classicista, teólogo, educador, tutor.
No reflexo da janela escura, observou seu rosto. Endireitou a postura, ensaiou o sotaque, alisou o cabelo.
— Senhor Arthur Mourvain — murmurou. — Uma honra conhecê-lo. E uma honra ainda maior substituí-lo.
O trem seguiria rumo ao norte antes do amanhecer.
Quando chegasse à estação final, ninguém notaria a ausência do verdadeiro tutor. Apenas a presença pontual de um novo homem, carregando livros, modos impecáveis — e uma nova vida cuidadosamente usurpada.
Naquela noite, durante a madrugada, o corpo foi lançado nos trilhos, entre as pedras e o mato úmido, como um erro que precisava ser apagado.
Na manhã seguinte, o homem que agora se apresentava como Arthur Mourvain desceu na estação seguinte com sua valise, cachecol, passos medidos e mais alguns pertences roubados. E seguiu rumo ao chauffeur que o esperava na estação para levá-lo à mansão Wyndham, onde seria recebido como homem de confiança, amante da virtude, discípulo da ordem e do saber.
Ninguém suspeitaria.
Não ainda.